sábado, 29 de janeiro de 2011

Trias e contos

O OBSERVADOR
Autor: C.M.poco
200"
 Tudo começou como uma brincadeira.
 Ele chegou cedo em casa, acendeu as luzes e deitou-se na cama. Estava cansado. Trabalhara o dia inteiro, mas finalmente havia chegado ao seu doce refúgio. A casa era de dois andares, num subúrbio do Rio Grande do Sul, pequena e aconchegante. Suas paredes brancas contrastavam com a solidão de seu interior vazio e fúnebre. Só possuía três peças o casebre. Um banheiro e cozinha embaixo com o quarto na parte superior. Jorge havia se mudado há pouco tempo, não conhecia muita gente, não possuía muitos móveis, mas tinha sua morada como um esconderijo, uma fortaleza. Era o que mais gostava no dia. Poder deitar naquela cama, se espreguiçar pra todos os lados, ninguém pra perturbar. Sequer um bichinho de estimação. Mas como disse, tudo começou como uma brincadeira.
   Lá estava Jorge relaxando, tranqüilo na nova casa, quando ouviu um ruído vindo da basculante. Era um ruído próximo, como se fosse ao lado da cama, mas ele estava  no andar de cima. O que poderia haver do lado de fora da casa? Nem mesmo havia reparado nisso quando a comprou. O barulho persistiu.
   Jorge levantou-se meio sonolento ainda e caminhou naquela direção, tentando descobrir o que fazia aquele som. Aproximando-se da janelinha, pôs os olhos furtivamente sobre o vão do vidro e observou uma deliciosa cena: uma loira de cabelos compridos, alta, seios fartos, cintura perfeita, tomando banho na residência ao lado da sua. Uau!
   Ele ficou estagnado por um momento, quase teve um espasmo de alegria, mas conteve-se refletindo na situação. Será que deveria continuar ali onde estava? Observando como um tarado qualquer que espreita uma cena perniciosa? “Claro que sim!” Pensou ele instintivamente.
    Na verdade tivera a maior sorte da vida. O lugar certo na hora certa. Aquela janela dava para o banheiro de outra casa. E olhando ao seu redor, Jorge notou que haviam outras basculantes como aquela!Quem sabe...Sim! as janelas de seu quarto se direcionavam para outros cômodos de outras casas. Simplesmente perfeito!
  E assim começou a brincadeira deliciosa de Jorge. Todos os dias chegava em casa como um louco e corria para as janelas. Ficava a noite toda lá, espionando, observando. Logo, começou a dedicar os finais de semana inteiros naquela atividade. Depois parou de se alimentar frequentemente para economizar tempo em sua missão. Comprou câmeras, binóculos, anotava e redigia tudo o que via, tudo o que ouvia. Estava paranóico!
  Dois meses depois estava sem emprego, magro e completamente só. Nada deveria atrapalhar sua obsessão. Dias e noites a fio com os olhos ali, controlando tudo o que se passava nas moradias alheias. Um guarda silencioso. Eterno vigia sombrio preso nos pensamentos obscuros da mente insana. Só havia um grave problema que o importunava todas as vezes que se encontrava de tocaia: a intensa vontade dos vizinhos de VIVER!
   Apesar de Jorge ter se isolado totalmente do mundo externo, vivendo de raras refeições, dedicando-se de corpo e alma à sua tarefa,seus nobres vizinhos não compartilhavam do mesmo compromisso para com ele. Como todas as famílias normais saíam para passear, trabalhavam, enfim, possuíam um jeito normal de ser. Foi aí que Jorge resolveu ajudá-los a ter mais responsabilidade e respeito para com os outros.
   -----------------------------------------------------------------
  Depois de uma semana presos como ratos numa gaiola, já deveriam estar sentindo o gostinho de como é ficar tanto tempo só, sem poder sair para nada, completamente esquecidos pelo mundo. Agora veriam como era bom! “ Grande idéia soldar as portas, trancafia-los todos de uma só vez. Grande idéia!" Satisfazia-se Jorge por dentro, remoendo consigo mesmo a atitude que tomara para acabar com aquele despeito. Imaginem só, que insolência! Pensar que podiam ficar livres por aí enquanto ele sentia-se tão... preso! Mas agora colhia os louros da vitória. Podia espreitar à vontade. Sem interrupções." Que ótimo!" Só que tudo o que é bom dura pouco tempo.
  “Ai, que droga, calem a boca! Chega de choro, seus idiotas!" Mais uma vez Jorge revirava-se na cama tentando dormir. Mas como, se não ficavam quietos? Toda a graça, toda a naturalidade da coisa se perdera por completo. Não era mais como antes. QUE GRANDE DROGA! Não durou muito até que se arrependesse tremendamente de ter feito o que fez. O que fazer? Chamou a polícia (pobre Jorge).
  Passaram-se algumas horas e houve um grande tumulto. Muito barulho. “ quem sabe daqui há um tempo o silêncio não volte a reinar” pensava ele tomando um cafezinho, enquanto observava pela janela as pessoas arrombando a porta na casa ao lado. E na outra. E na outra de novo." Quem sabe não é?”
   De repente o barulho começou a ficar mais forte. E mais intenso. Como se fosse ali mesmo, na própria casa de Jorge. “ Que estranho!" Não tão estranho quanto aquela fumaça que invadiu o local. Nem aqueles homens correndo ao seu encontro. Mais esquisito ainda aquela horrível dor na nuca. O que teria acontecido?
   Agora Jorge estava num lugar minúsculo, deitado em uma espécie de cama com correntes que prendiam seus pés e mãos. de vez em quando surgia  um prato de comida por debaixo da imensa porta de ferro que não o deixava sair. Nada de janelas. Nada de vizinhos. “ Que lugar é este?” Pensava Jorge, apavorado.A noite, tinha pesadelos horríveis com demônios todos de branco que vinham lhe atormentar com agulhas, alfinetando seu corpo todo sem parar. obrigavam-no a engolir coisas com um gosto estranho que lhe davam arrepios e traziam à memória todo o tipo de sofrimento por que já tinha passado. Jorge sentia-se todo o tempo observado, algemado, como se olhos vivos o vigiassem o tempo todo. Diferente de antes, tudo o que ele queria era SAIR, SAIR,SAIR!
   Do outro lado da sala o enfermeiro da ala psiquiátrica conversava com o médico:
   ‘O que o senhor acha desse caso doutor?'
  “ Meu jovem, é bom que você observe bem. Como pode ver ele está paranóico. Necessita de terapia intensiva. Tome conta especialmente deste paciente. Jamais o deixe sozinho, de maneira nenhuma.”
 ‘ Será que tem solução doutor?’
‘ Não, meu amigo. Creio que não. Pela minha experiência, digo que passará o resto de seus dias aqui. Tudo o que lhe resta agora é ser observado constantemente para pesquisas médicas. Mas não se entristeça, olhe o seu histórico mental! Com certeza ele adorará ser vigiado para sempre por nós.'
 
FIM.

Trias e Contos

MOVIDO PELA FOME
Autor: JRM Torres
movido

Ricardo sentiu as transformações ocorrerem em seu corpo.
Escondeu-se atrás de uma árvore, naquele matagal denso, e ajoelhou-se no chão sujo. Chegou a rezar, para impedir que as coisas acontecessem. Em vão, pois sabia que o processo era irreversível. Sentia dores e gemia, enquanto a metamorfose se processava. Aos poucos, a pele se estendeu, adquirindo uma tonalidade escura. Os pêlos brotaram, grossos e negros, e espalharam-se por todo o corpo, dos pés à cabeça. Tudo foi se modificando. O nariz cresceu, tornando-se afilado e grotesco, a boca se alargou, os dentes cresceram, afiados e sinistros. Nos olhos, as pupilas se dilataram e a íris tornou-se vermelha. As sobrancelhas desproporcionais se uniram. A testa se enrugou, os ossos da face se estreitaram, os cabelos se multiplicaram. Seu rosto adquiriu, então, uma compleição canina e sobrenatural. As mãos, antes pequenas e normais, tornaram-se imensas e disformes, os dentes longos e as unhas afiadas se destacando. Garras cruéis! Pés largos! Olhar insano! Seu corpo, de modo geral, cresceu assustadoramente. Tinha, nesse momento, dois metros de altura, largo, peludo e musculoso. Sua roupa se rompeu, ante a mudança de tamanho. Restava-lhe a calça rasgada, agora um short minúsculo, que mal lhe cobria os órgãos genitais. Quam ali adentrasse, naquele instante, iria ver uma mistura de homem com lobo, horripilante e asquerosa. Aos poucos, a sanidade esvaiu-se de seus neurônios, dando lugar aos pensamentos maléficos e... à fome. Levantou-se, urrando alto. A fome o dominava, dolorosa, e era como um maçarico ignóbil, queimando-lhe as entranhas. Ricardo, o entregador de jornais, que andava de bicicleta pelas ruas daquela cidadezinha do interior, não existia mais. O ser animalesco que tomou o lugar dele começou a andar, o corpo curvado, na direção das casas daquele bairro pobre. A noite era quente, mas um vento frio começava a soprar do norte. No céu, a lua cheia, límpida e resplandecente, dava seu show, iluminando o ambiente. A lua mortal, que hipnotizava e dominava, com sua força invisível. O animal (ou entidade) aumentou as passadas, movido pela fome, e saiu do matagal. Apoiava as mãos no chão e seus passos eram desconexos. Percorreu a rua de terra batida. As casas, rústicas e humildes, eram feitas de barro amassado, estreitas e de um pavimento, com os telhados compostos de palha seca. Não havia a presença de qualquer ser humano nas imediações. Algo previsível. Afinal, a notícia de que um ser misterioso matara seis pessoas na região se espalhara depressa, naquela localidade do nordeste, apavorando os moradores. Dois cachorros, ao vê-los, ganiram de terror e recuaram. Urrou baixo, para não chamar a atenção, lançando sobre eles seu olhar de ódio. Entre espasmos violentos, os animais correram, desesperados, procurando fugir de sua presença satânica. Logo desapareceram atrás de um das casas. Não queria comer cachorros, pois seu corpo ansiava por outro tipo de carne. A fome lhe era insuportável. Percorreu os duzentos metros da rua deserta e dobrou à direita. Fuçava o ar, seu nariz poderoso com capacidade para perceber e inalar os odores mais distantes. De repente, notou a presença daquilo que mais desejava. Havia um ser humano por perto! Um ser humano ao ar livre, que ousou sair de uma das casas. Ótimo! Seu corpo estremeceu, a fome penetrando seu íntimo com um esgar feroz. A ansiedade lhe era insuportável, ante aquele cheiro tão peculiar e conhecido. Parou no meio da rua e procurou localizar sua provável vítima. Logo o avistou. O vulto saiu de um beco, deslocando-se lentamente, parando no meio da rua, a cerca de duzentos metros local de onde se encontrava. Parou e ficou de frente para ele, como se o esperasse. Sentiu a saliva escorrer de sua boca, ante aquele odor delicioso. Antevia o prazer de saborear a carne mais saborosa do universo! O gosto do sangue! A delícia que seria dilacerar cada naco daqueles músculos, daquele... corpo. Maravilhoso! Sua fome estava prestes a ser saciada! Sim. Bastava correr (numa perseguição alucinante) para cima do vulto e atacá-lo. Seus dentes cortantes e suas garras afiadas fariam o resto. Não haveria falhas. Seria sua sétima vítima. No entanto... *** Algo estava errado! *** Percebeu que... não havia medo naquele ser! Seus instintos animalescos diziam que não havia medo! Inacreditável! Bizarro! Não conseguia captar o inebriante e vivificante cheiro do medo exalando daquele vulto. O medo, comum a todos os seres humanos. O que estava acontecendo? Por que ele não fugia, não procurava correr, como fizeram os cachorros e as outras vítimas? Por que permanecia parado no meio rua, numa atitude arrogante e desafiadora? Seria um suicida? Ou um louco? Um psicopata, imerso nas suas alucinações, de tal forma que não possuía aquele sentimento tão intrínseco e dominante? Um homem sem medo? Isso era possível? Mas isso não tinha importância. Ele iria morrer e teria seu corpo estraçalhado e seus gritos seriam ouvidos a quilômetros. Sua morte seria tão terrível quanto à dos demais. Pagaria caro sua prepotência e imprudência. Ninguém poderia salvar aquele louco! Movido pela fome e pelo ódio, movimentou o corpo e disparou, na direção do vulto, enquanto soltava seu urro animalesco. Foi uma corrida desenfreada, já sabendo que o vulto correria para se esconder. Ele tentaria, mas não conseguiria escapar. Porém, algo estranho aconteceu! Sentiu, naquele momento, o cheiro da morte! *** Sentiu... ... quando viu o cano escuro apontando na sua direção. Numa fração de segundo, compreendeu tudo. Tentou parar de correr, para desviar-se da força do que vinha pela frente. Não deu tempo. Ele, o algoz, o animal sanguinário e assassino, foi vítima de sua autoconfiança e... da fome. O barulho da explosão retiniu, nítido e brutal, em seus ouvidos sensíveis. Outras explosões se fizeram ouvir. Urrou de dor, ao sentir os projéteis penetrando seu corpo. Teriam sido quatro? Cinco? Seis? Penetraram sua carne, rasgando veias e artérias. Caiu no chão, a dois metros do vulto. Não chegou a vê-lo, uma vez que seu próprio corpo entrou em agonia. O sangue brotava dos ferimentos. Não conseguia respirar. A dor! A maldita dor era atroz! Espalhou-se por cada poro, cada músculo, dominando-o e enlouquecendo-o. Não tinha forças! Não tinha forças sequer para rastejar. Enquanto morria, sentiu que Ricardo, o entregador de jornais, retornava do limbo, na transformação de todas as noites de lua cheia. Urrou de dor e esse foi seu último gesto. Ricardo voltou, mas estava morto, juntamente com seu hospedeiro. *** A lua brilhava, linda e resplandecente, naquela madrugada friorenta. O homem deu uma olhada para cima (como que agradecendo), baixou o cano da arma e jogou fora o pedaço de fumo que mascava. Em seguida, retirou, do bolso da calça, um telefone celular e, sem olhar para o corpo estendido no chão sujo, começou a apertar - lentamente e com frieza - vários números. FIM